A cama

O sabor picante e delicioso de um corpo ardente de desejo. Prato cheio e que dispensa acompanhamentos. Pode ser requintado, cheio de temperos exóticos, para ser degustado devagar, com língua, olhos e nariz. Pode ser um grande pedaço de carne sangrando, para ser mordido e arrancados os pedaços com dentes afiados e mãos firmes. Importa? Não. Importa que sacie. Tragam meu banquete.

Do blog http://pautaquepariu.zip.net

Texto originalmente publicado em dezembro de 2005 no blog Las-Cas

A cama

O despertar

O “mentir” chegou devagar, mas sem que percebesse, tornou-se um conveniente hábito. E, para mentir, ele imaginava o que seu interlocutor pensava. Fixava o seu olhar no daquele que lhe escutava. Sem tropeçar nas palavras, derramava sua convicta idéia e com o talento em entrelaçar e gesticular, envolvia os sentidos do outro e em outros assuntos fazia a conversa mudar de rumo. Um dia mentiu diante do espelho, enganou a si mesmo e hoje não sabe mais quem é.

Do site http://naomordamaca.com

Texto originalmente publicado em dezembro de 2005 no blog Las-Cas

O despertar

O acerto

Dona Guiomar ganhou uma taça de cristal de uma comadre rica da capital. Estava no armário há um ano e não havia dia em que dona Guiomar não olhasse para aquela linda transparência e pensasse em uma festa requintada onde ela, muito bem vestida, tomaria o melhor vinho do lugar naquela taça. Um suspiro saltava de seu coração, pelo sonho de cinderela que nunca se realizaria. Mas, um dia, cansada da labuta diária, entediada com o marido e sem paciência para o filho pequeno, ela foi para o alpendre com uma garrafa amarela de aguardente e descobriu utilidade para a taça.

 

Imagem daqui http://bbel.uol.com.br

 

Texto originalmente publicado em dezembro de 2005 no blog Las-Cas

O acerto

Liquefeita

Ela chorou e não conseguiu conter a tristeza que naquele momento tomava seu coração. Para qualquer lado que olhasse em sua vida, não via nada além de motivos para desânimo, até mesmo na sua fraqueza em aceitar esta situação. A dor aumentava quando pensava o quão fútil, inútil e insesato era tudo aquilo, uma vez que tudo que precisava estava em suas mãos. Parecia esvair-se, evaporar, se liquefazer em algo sem gosto, sem odor e sem a mínima graça. Sentia-se extremamente envegonhada, na frente dos outros e de si mesma. Seus olhos não conseguiam fitar toda essa verdade…

Suas lágrimas eram contidas como a última tentativa de ser firme, mas deixava-as cair quando assumia, para si mesma, que tudo não passava de uma ilusão. O coração, mudo dentro do peito, fazia movimentos como se fosse implodir. A frase “Não adianta dormir que a dor não passa”, do grande poeta, lhe vinha à cabeça a cada par de segundos. Todos os insultos que pôde usou contra si e defendia-se sozinha com sussurros mudos. Cabisbaixa, deixou que o peso de sua consciência se espalhasse por todo o seu corpo, que não conseguia fazer outra coisa senão expressar sua mágoa, preguiça, raiva, ciúme, fracasso, dispersão e asco. Deixou-se assim, por alguns minutos, depois dos quais, finalmente, morreu.

Texto originalmente publicado em dezembro de 2005 no blog Las-Cas

Imagem do http://pitacosdamorgye.blogspot.com/
Liquefeita

Engano

O sangue já estava no seu rosto quando olhou para o lado e viu aquela figura, imóvel, a lhe observar. Não pôde conter o susto, afinal, ninguém podia ter visto que acabara de matar sua mulher, com um golpe, um rápido e seguro golpe no pescoço. Uma precisão que surpreendeu até mesmo o pobre Frederico e não deu chance de gritos à esposa. Há anos, depois de muitas lágrimas femininas colecionadas, jurou por si mesmo e por Santo Expedito que seria fiel à sua futura esposa, a qual ainda não conhecia. Açougueiro de um das dezenas de matadouros clandestinos da cidade, converteu-se à Igreja do Fogo Eterno da Divindade depois de bater em sua mãe pela segunda vez – na primeira, ele estava bêbado. Só que, naquela noite sem lua, Glaucinete tinha trazido o diabo para dentro de casa e derramou sobre Fredinho toda a sua insatisfação enquanto amante e, ainda cheirando a Sapupara Limão, confessou que tinha passado a noite com Luís “Caldinho”, com quem o marido tinha uma rixa antiga.

A raiva do rude Fred se uniu ao que já vinha ouvindo falar da mulher, comentários ignoradas em nome do matrimônio sagrado, mais valoroso do que qualquer briga. Ninguém ligava, os vizinhos ignoravam. Por que, justo naquele dia, alguém os olhava? Ele não sabia o que fazer, mas a primeira reação foi se esconder ao lado da geladeira, enquanto o sangue da mulher sujava o chão da cozinha. O suor chegava à sua boca sem que sentisse o gosto e o som agoniado da sua respiração lhe deixava ainda mais nervoso. Pensou em correr no outro apartamento – cujo dono não conhecia, pois havia pouco tempo de mudança – e calar definitivamente a testemunha. Mas uma voz qualquer, dessas que aparecem do nada e lhe fazem pensar que uma determinada inspiração é sua, lhe susurrou que outro assassinato só pioraria a situação.

Olhava para todos os lados e para o corpo caído perto da mesa, para o vestido amarelho ensopado de vermelho, para as unhas com Rebu e para a pulseira de miçangas comprada no Natal. Voltou o olhar para a janela e o misterioso observador ainda estava lá, impassível. Frederico S. de S. Araújo teve ainda mais medo diante daquela sombra e, com o celular pré-pago comprado para Glaucinete, ligou para a polícia e se entregou – um animal merece ficar preso, como pensou. A viatura demorou a chegar e o dia foi clareando. Mesmo réu confesso, continuou escondendo-se perto da geladeira. Porém, chegou à conclusão de que não havia mais o que temer. Quando olhou para a janela do outro apartamento viu panos de chão vermelhos pendurados entre os vidros das venezianas. O grito foi impossível de conter, assim como também foi inevitável tentar fugir, mas os homens já esperavam por ele na única saída do prédio.

Texto originalmente publicado em dezembro de 2005 no blog Las-Cas. Inspirado numa confusão real que eu fiz entre um pano pendurado em uma área de serviço e uma pessoa me observando à noite.

Cena de Amarelo Manga
Engano

Tanto riso

Sofia sorria demais. E como eu ia contar piadas? Se ela já as conhecia e já ria antes de eu terminar? Como deixar a raiva que sentia do seu sorriso de lado? Não, a paixão não é o bastante. Assim como minha companhia não era o bastante. Ela tinha que tagarelar, precisava chamar atenção. O som da TV não a impedia de gargalhar ainda mais alto e zombar dos trejeitos de bicho, gente, casa – todo o tempo, qualquer lugar. Ai, como me doía. Sofia sorria demais. E eu fiquei para trás, porque os passos dela, assim como seu riso, eram largos. Sofia, eu sofria demais.

» “Pesquisa recente conduzida pelo psicólogo Eric Bressler, da Universidade de Halmiton, Canadá, mostra que cada um dos sexos cultiva expectativas diferentes em relação ao outro quando o assunto é humor. (…) Conclusão do estudo: os homens adoram que suas parceiras riam das gracinhas que eles fazem, mas não se sentem atraídos por mulheres que fazem piadas. Em outras palavras: para eles, mulher bem humorada não é aquela que “produz” humor, mas a que está sempre receptiva ao humor do parceiro” (Revista Veja, ed. 1926, out/05) E viva o machismo!


 

Texto originalmente publicado em dezembro de 2005 no blog Las-Cas

Tanto riso

Prefeito

Prefeito

O escritório na prefeitura ficou pequeno demais. Então o prefeito mudou-se para uma grande e cara casa no bairro mais nobre da cidade, onde, em um das dezenas de cômodos, resolvia alguns dos poucos problemas do lugar. Mas, estressado, ele resolveu construir um castelo no litoral, onde poderia atender seus secretários em paz, longe dos milhares de pedidos de ajuda que não lhe largaram mesmo depois da primeira mudança. Em outro município, com vista para o mar, o prefeito agora usa a internet para ver a cidade, através das câmeras que mandou instalar. Agora, todo mundo já sabe e pede as coisas por elas. Horrorizado com a ousadia dos seus eleitores, ele mudou-se para outro estado e só voltou quando descobriu que seu vice havia assumido seu lugar.

 

Texto originalmente publicado em dezembro de 2005 no blog Las-Cas

Prefeito

Mulher

Havia dias que chorava, tanto que seu rosto de branco tornou-se vermelho e suas lágrimas salgaram sua saliva. Nos últimos anos já era o terceiro que não conseguia ser somente dela. Desta vez, a outra sabia que havia outra. E as duas se encontraram algumas vezes, na presença dele. Não conseguia compreender porque não era a preferida, uma vez que todos os seus esforços eram para ele, no trabalho ou na cama. E ele dizia que a queria, prometia que, um dia, tudo se resolveria. Depois de dias chorando, um anjo pousou sobre seu coração – como pensou – e, finalmente, ela entendeu que era daquilo que ela gostava, era aquilo o que sempre procurou e, por isso, foi o que sempre atraiu. E foi assim, consciente do seu querer, que ela viveu feliz pelo resto da vida, sempre do outro lado do espelho.


“O coração de mulher é santuário de ouro onde muitas vezes ela venera ídolo de barro” (Paul Limayrac)

Texto originalmente publicado em 24/12/2005 no blog Las-Cas

Mulher

Falíveis como eu

Eu não tenho filhos, mas talvez tão difícil quanto sair da posição de filho para a de pai ou mãe seja a descoberta do quão humanos são os nossos pais.

Acredito ser saudável a visão infantil do pai super-herói ou da mãe divina. Isso, na maioria das vezes, deve ser reflexo de dedicação aos filhos, ou pelo menos de uma boa tentativa.

Mas haverá a hora quando, naturalmente ou forçosamente, a fantasia acabará. Dependendo de como esse processo se desenrola, pode resultar em uma profunda e nociva desilusão. Ou, ao contrário, transformar essas lembranças da infância em uma almofada de afeto para uma realidade de verdades. Como cada ser e cada família é um universo, as possibilidades são inúmeras.

Acho que tive sorte. Ou, do ponto de vista cristão, sou abençoada. Apesar de ter sentido o impacto de saber, constatar e viver as falhas e defeitos de meus pais, não precisei esperar os ensinamentos dos meus futuros filhos.
Os acontecimentos ao meu redor me mostraram que meus pais são feitos de corpo e alma, falíveis como eu. E, assim como eu, passíveis de aprimoramentos. Assim como eu com méritos a contar e fracassos a acomodar. Assim como eu, humanos.

Isso não tira homens e mulheres que têm filhos da categoria especialíssima de pais, mas remove de suas costas o peso da implacável cobrança – tantas vezes ingrata – filial.

Hoje, aos 27 anos, posso ser grata aos meus pais de modo mais pleno. Posso conversar com eles de maneira mais equilibrada, sem perder o respeito – esse sentimento que também posso pedir com mais propriedade.
Assim, faço votos de que os filhos consigam enxergar, compreender e dar melhores destinos – ternos ou não – à humanidade de seus pais.

 

Ilustração: http://obichodoslivros.no.sapo.pt/ilustracoes.htm
Falíveis como eu

Mônica Serra fez aborto(?). Quem faria?

Mônica Serra fez aborto aos 4 meses de gravidez http://bitURL.net/ap53http://bitURL.net/ap54. Eu ainda n tinha visto.


Isso aí em cima coloquei no Twitter hoje. Ainda não sei o quanto de verdade tem nisso – até porque a assessoria da campanha de Serra já desmentiu a moça. E me lembrei que não tenho uma posição fechada e imutável sobre a questão. Resolvi refletir escrevendo e estou compartilhando com vocês, pegando uma “licença poética” para a falta de dados e comprovações, como minha essência jornalística manda fazer.

Sou cristã e assim acredito que ninguém pode acabar com uma vida. Nem mesmo com a própria. Sou simpatizante do espiritismo (ou espírita-não-praticante, se é que alguém pode ser de uma religião sem praticá-la) e acredito que antes mesmo de ser concebida, a criança já tem uma alma, uma vida, que está encaminhada àquela mãe. Desse modo, sou contra o aborto enquanto homicídio doloso, aquele com intenção de matar.

Porém, seguindo as mesmas linhas cristãs, não posso julgar quem faz, fez ou fará um aborto. Até julgo “um pouquinho”, mas sei que é tão errado fazer isso quanto aceitar que se mate alguém por motivo X ou Y. O problema é que um aborto não envolve apenas uma possível vontade consciente de matar um bebê – mais do que isso, o próprio filho. As questões podem ser muitas e por vezes demasiadamente cruéis, como um estupro violento ou uma criança-vegetal. Ora, quem de nós, tão cristãs e tão corretas, não ficaria extremamente abalada ao saber que, por exemplo, está ali na sua barriga um fruto não de um amor, mas de um trauma de um estuprador que pode ter feito outras violências e deixado sérias sequelas? E ainda por cima ter deixado na criança a semelhança física que vai fazer você lembrar dele sempre que olhar pra ela? Ou ainda quem não ficaria à beira do desespero ao saber que a criança não nascerá saudável, que terá poucos meses de vida e nesse tempo não vai falar nem andar porque nascerá sem cérebro? Há ainda diversas outras questões, como abuso por pais e outros parentes, risco extremo de vida para a mãe, entre outras.

Obviamente, nós cristãos sabemos que nada acontece sem que Deus permita, sem que estejamos “pagando” ou “nos purificando” ou ainda “nos elevando” com uma provação como essas. Mas mesmo nós, com nossas famílias amorosas, nossas condições de vida confortáveis e nossa formação cristã, sentiríamos um duro golpe em uma dessas situações. Você, principalmente se for mulher, feche os olhos e se coloque por um minuto em uma situação como essa.

De outro lado, está a questão de apoio legal do Estado – que, diga-se de passagem, é laico. Se o aborto é clandestino, as chances de fazer mal à saúde da mulher ou até matá-la aumentam muito. Se legalizado, pode servir de “incentivo”. O que fazer então? Eu não sei o que fazer quanto à legalização. Talvez a criminalização quando ficasse provado que a mulher tem condições físicas e psicológicas de ter a criança ou que a doação para a adoção também fosse impossível. Que critérios seriam esses? É outra discussão.

Mas sei que, como qualquer coisa no Brasil, deveríamos cuidar do que está errado antes de inventar novas preocupações (vide a questão do veículo leve sobre trilhos – não temos ferrovias nem metrôs que prestem, mas queremos trens-bala). Ou seja, nossas adolescentes não têm educação sexual séria nas escolas. A atenção médica pública é uma piada. O planejamento familiar e o suporte psicológico são inexistentes (ou apenas quantitativos para encher relatórios). Cidadania é algo ainda fora do alcance da maioria. Ao lado disso, a despeito do poder midiático da Lei Maria da Penha, as delegacias não resolvem – e muitas vezes atendem mal – os casos de violência contra a mulher. Será que se conseguíssemos elevar os níveis de eficácia disso tudo a 75% teríamos tanto problema com aborto? Sim, claro, a discussão sobre a legalização ainda existiria, mas sobre um problema muito menos letal (para mães e filhos).

Enfim, cabe a nós, como cidadãos, não só estar atentos aos debates que podem mudar as regras do país mas também à boa execução do que já é lei e não funciona.
Mônica Serra fez aborto(?). Quem faria?